terça-feira, 31 de março de 2020

a criança que habita.

terça-feira, 31 de março de 2020 0

Foi naquela conversa que eu percebi que ainda habita em mim um menino assustado com seus dez anos de idade. Um menino puro, encantado e aterrorizado ao mesmo tempo. Querendo saltar os muros da escola para fugir de todo o caos que há nela mas também sedento por desbravar o mundo colorido que há fora. Um garoto que ri de tudo e chora à noite antes de dormir temendo o que virá ao nascer do sol. Coração acelerado, angustiado, apertado, mas imenso. Um rapazinho que ainda acredita na bondade das pessoas, mas que experimenta, todos os dias, a treva que lhe é lançada. Um colo que acalenta e afugenta, um colo ora morno, ora gelado. A necessidade de se abrir e um receio de ser incompreendido. Deve ser por tudo isso que aquela voz, sempre presente em seus fones de ouvido durante a infância e adolescência, ainda é capaz de o fazer chorar e rir: exerce tamanho poder nas suas sensações e sentimentos, como se o tempo nunca tivesse realmente passado. Freud é capaz de explicar muita coisa, porém só o meu eu adulto consegue aplicar sua teoria e perceber em que e como vive o meu eu criança. Uma coisa é certa, feliz e infelizmente, ele vive mais em mim do que eu ousava imaginar. E, como toda relação entre mais de um indivíduo, vivencia seus momentos de diversão, nos quais o adulto e a criança passeiam de mãos dadas por um parque; os momentos de bronca, quando o adulto se rebela contra as vontades puras e o linguajar simples e infantil da criança.  E eu, como todas as outras pessoas (e todas as crianças), custo a aprender realmente como a vida é feita. Altos e baixos. Medos e alegrias. Vitórias e derrotas. Medos. Muitos medos.

segunda-feira, 18 de março de 2019

fogi.

segunda-feira, 18 de março de 2019 0
Uma dose, duas ou três. Já nem sei mais onde estou, mas sei que estou bem. Solto fumaça pelo ar e isso me faz sentir vivo. Você mia do meu lado, traz seu rato pra mim. Se isso não é viver a plenitude, não sei o que é, então. Amanhã eu acordo cedo e o sono não vem. Talvez seja a hora de tomar a quarta. Tomo. Ansiedade. Agonia. Felicidade. Nem sei mais o que estou sentindo. Quando meu corpo começa a querer adormecer, você me assusta com seu olhar fixo e seu pulo certeiro e desengonçado. A noite é uma criança, é hora da diversão - você deve estar pensando. E não é que concordo com você, serzinho minúsculo e sem compromisso algum no dia seguinte. Eu me sento, mas logo me levanto. Abro a geladeira e a quinta está lá. Não é errado eu me embriagar todas as noites? Talvez seja, talvez não. Quem sabe? Você não me julga, apenas ronrona pedindo mais atenção. A noite não é uma criança, a noite é felina. A noite é quando a cidade dorme, porém nem tanto já que vivemos no centro da cidade, atrás de um hospital movimentado e em frente a uma rua tumultuada. Então decidimos ficar acordados, na companhia um do outro, entre doses e sachês - tudo isso basta, pelo menos por hoje. Amanhã é outro dia, amanhã vemos o que fazer com a noite vivida (jamais perdida). Há quem diga que estamos errados por sermos tão noturnos enquanto a cidade inteira dorme, mas quem são eles para nos julgarem? Durante a noite somos quem queremos ser, agimos de acordo com o que realmente somos - você do seu jeito e eu do meu. Tudo isso parece ser suficiente. Você da sua maneira esguia e aparentemente astuta, eu com meus tragos e devaneios, que parecem ser todos compreendidos pelo seu olhar. Acho que você me entende o jeito que eu sou e eu gosto do jeito que você é - independente e carente ao mesmo tempo. Não somos os mesmos, mas sabemos aproveitar a noite - sozinhos ou juntos. Você pedindo pra eu correr atrás de você e eu pedindo para lhe fazer um afago. No final das contas e no fim da noite, você é quem acaba me afagando e eu acabo lhe afastando.  Vou dormir, boa noite. Amanhã é outro dia, mas, com certeza, hoje foi mais uma das nossas noites.

2019.

Disseram que tudo bem fazer armas com as mãos, disseram que tudo bem armar a população. Disseram que violência se combate com violência. Disseram que direitos humanos protegem apenas os bandidos. Disseram que o cidadão de bem tinha o direito de se proteger, disseram que apenas eles tinham o direito de escolher quem vive e quem vai morrer. Gritaram que a minoria deveria se submeter à maioria, berraram que a mulher, só por ser livre, era nada mais que uma vadia. Urraram que era melhor um filho morto a um filho viado, urraram que o pobre preto favelado era sempre o culpado - então atira e mata esse ladrão. 
Uma criança atirou: não se sentiram culpados. Uma mulher apanhou: deve ter merecido. Um viado foi assassinado: talvez ele tenha agido de uma maneira inapropriada. Um preto foi preso (sorte dele que não apanhou ou morreu) apenas por estar e ser. Mas o bandido rico hetero branco é apenas um garoto, não sabe o que faz, já pediu desculpas e foi inocentado. 
Eles não sabem (ou talvez saibam e neguem até o fim) que suas mãos estão sujas de sangue. "Mas eu tenho o direito de me defender" - disse o pai de família rico que sonega impostos, não paga pensão, cujo maior medo é o de roubarem seu carro importado.
"Que matem todos que ameacem meus direitos (lê-se privilégios)" - disseram sem se importar se os outros possuíam sequer o direito de ser humano. As mãos estão sujas de sangue, mesmo que jamais tenham matado um sequer. 
Minha avó sempre me disse que a palavra tem muito poder, então quem fomenta discurso de ódio nada mais é que alguém com as mãos sujas de sangue de cada preto, de cada viado, de cada pobre, de cada mulher, de cada sapatão e de cada travesti que morre em nome da higienização da sociedade, venha ela em forma de moralismo velado, venha ela em forma de preconceito. Ah, e se a criança matou ou morreu com tiro de uma arma adquirida legalmente, não se sinta menos culpado. Não é uma sociedade armada uma sociedade protegida? Então, rumo aos Estados Unidos.
As mãos estão sujas de sangue não por uma facada, mas por um discurso incentivador de ódio, violência e extermínio em prol de uma sociedade privilegiada, que canta o hino nacional nas escolas como se amasse o Brasil acima de tudo (qual Brasil vocês amam?), que legitima a padronização, que não se importa com a diversidade, que diz o que quer quando quer e pra quem quer e chama isso de opinião. As suas mãos já estão ensanguentadas quando você diz que bandido bom é bandido morto, significando que apenas o pobre é bandido merecedor da morte, como se roubar um celular fosse trágico o suficiente a ponto de perdoar e esquecer todos os crimes diários que os poderosos cometem. Suas mãos estão inundadas de sangue vermelho (ou azul?) quando a propriedade desocupada e inútil vale mais que a vida de milhares de pessoas que não possuem onde morar por conta da sociedade injusta e desigual. Suas mãos estão escorrendo morte quando você é contra o filho da empregada frequentar a mesma universidade que seu filho, quando você é a favor da agroindústria em detrimento da demarcação das terras indígenas. Sua mão está cheia de sangue desde o momento que seu voto é baseado na limpeza de uma sociedade que favorece apenas você e seus iguais. Então, desculpe-me por informar, prezado cidadão dos bons costumes, do hino nacional, da arminha com a mão, dos privilégios, do conservadorismo estarrecedor, suas mãos estão sujas com o sangue de todas as pessoas que morreram, morrem e morrerão em prol da moralidade, da suposta ordem, do purismo, da higienização , do combate ao crime seletivo de forma truculenta e da salvação falaciosa que vocês tanto almejam e pregam.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

27.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019 0
Eu sempre costumava dizer, até ontem mesmo, para mim e para os outros, que eu morreria com 27 anos. Um complexo de wannabe rockstar misturado com um medo de ficar velho. Confesso que ainda tenho um pouco - talvez muito - dessas duas inquietudes. Mas cheguei aos 27 anos, estou a alguns dias de completar 28 e, para nosso espanto, continuo vivo! Neste último ano, diversas partes de mim devem ter morrido: algumas boas, outras nem tanto. Não sou a mesma pessoa que era com 26 e não serei a mesma com 28 anos. Se bem que essa questão cronológica talvez nem tenha tanta importância. A gente só muda se quiser mudar. E eu acho que eu quis mudar e, por isso, mudei e também morri. Morri quando vi parte de minha família defendendo discurso de ódio; morri quando uma notícia falsa valia mais do que a minha própria palavra para meu pai; morri mais um pouco quando percebi que não seria possível mais continuar com vínculos - já fracos desde sempre, confesso - em detrimento das minhas convicções e posições não só políticas mas morais e éticas. Morri um tico mais quando esse discurso horripilante ganhou as urnas; quando os direitos humanos foram baleados e massacrados propositalmente; morri ao ver o conservadorismo de uma sociedade medíocre exposto cru e aberto para quem quisesse ver. Morri e não foi pouco. Mas, posso afirmar que, dentre todas essas mortes, a minha parte humana não morreu - ela sangrou, desejou morrer, mas lutou e não morreu. Essa parte continuou e continua [mais] viva, fazendo-me enxergar o quanto eu ainda era cruel e desumano, o quanto eu ainda havia por evoluir. Poderia falar que, então, outra parte minha morreu, mas eu já cansei de morrer nesses últimos tempos. E, de tanto morrer, preferi optar por renascer. Renasci e renasci muito - para mim mesmo e para os outros. Talvez eles nem percebam tanta a diferença, mas eu sinto aqui no meu peito que esse coração bate com uma outra frequência cardíaca do que costumava bater. Eu continuo ansioso, continuo inconsequente, continuo irritável e continuo extremamente confuso; mas também continuo alegre, continuo solícito (na maioria das vezes) e tento continuar humano. Na verdade, sinto-me mais animal que nunca - animal com seus direitos desrespeitados e ameaçados pelos próprios pares. Animal de carne fraca, vulnerável e frágil. E, por enxergar essas condições nas quais me encontro, sinto-me capaz de evoluir como ser humano, como animal e como alma que habita um corpo terráqueo. Por isso, quando forem a minha festa de aniversário e me caçoarem porque não morri com 27 anos, como eu sempre havia dito que aconteceria, eu vou retrucar e falar... Não, eu não vou falar nada. Apenas vou saber, por mim mesmo, que eu morri, sim, mas também renasci diversas vezes durante os meus 27 anos de idade.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

inundado.

quarta-feira, 30 de maio de 2018 0

Eu andava por ai, sem eira nem beira, pulando ladrilhos e atirando pedras em lagos. À toa. Entre copos e multidões, entre sofá e televisão, entre mim e eu mesmo. Passeava pela cidade sem procurar por nada em específico, apenas aproveitando a liberdade e a coragem que eu tinha de ser para mim o que jamais alguém poderia ser. Dando chances ao acaso, mesmo sabendo que eu já estava protegido, andando distraído. Com tudo o que eu precisava, já me sentia completo só por saber que eu estava vivo. Onde é que eu estava com a cabeça naquela quinta-feira? Larguei meu carro em um lugar qualquer e fui ao seu encontro, sem esperar nada haja vista que eu já tinha tudo. Cheguei, chegou, é aqui? Entremos. Perdido entre guarda-sóis debaixo de lua, mal conseguíamos andar entre os banquinhos – ou eram cadeiras de praia? Eu esperando que você arrumasse um lugar para ficarmos. Você parado. “Moça, tem lugar para dois?”. Não havia. Então vamos para outro lugar. Você como forasteiro, eu como indeciso, você como libriano, eu como perdido. Fomos. Sentamos. Por que eu tenho que escolher o que vamos beber? Eu odeio tomar decisões que envolvam outras pessoas. Escolhi, mostrei-me dono de mim (pelo menos na minha cabeça) novamente. Heineken. Cerveja entra, palavras saem. E se você me perguntar, eu responderei que mal lembro o que conversamos naquela noite. Mas se quiser saber como me senti, uma coisa é certa: eu senti.  Começou a chover, poderíamos ter encerrado a conta e ido embora, mas resolvemos entrar. Acho que devo ter tropeçado umas treze vezes no mínimo até chegar à mesa coberta. Você reparou? Pouco importa porque eu já estava me sentindo como se fossemos amig... namora... como se fossemos há muito tempo. Ele não vai discordar de nada que eu digo? Quando me dei por mim, estávamos nos abraçando de mãos dadas no meio de um monte de gente (ou o bar estava vazio?). Quando pisquei os olhos novamente, estávamos no meio da rua cantando, gritando e dançando como se fossemos invisíveis, ou melhor, como se não nos importássemos com o que o resto do mundo ia pensar e falar de nós dois juntos. E, sinceramente, acho que não nos importamos mesmo. Quando você me deixou no meu carro, eu não liguei se ele estava encharcado por causa da chuva, porque eu sabia que o que realmente importava era que você já tinha começado a inundar meu coração.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Antônio.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018 0
Às vezes o aconchego se encontra em um tom de voz ou no som de uma gargalhada, não precisando de mais nada pra que nos sintamos pertencentes ao lugar que estamos além de uma mão para segurar. Como é bom contar histórias para pessoas que realmente querem ouvi-las; como é bom ouvir histórias de quem gosta de contá-las para você. Dois lanches e um bocado de músicas se mostraram suficientes para acalentar um coração quase sempre ávido por aventuras. Minha vida, quase sempre tão agitada, tão ansiosa, tão turbulenta, acaba me desacostumando a contemplar qualquer coisa de forma estática. Porém, ao passar por aquele rio durante aquela chuva, percebi que até ele estava mais agitado e, estranhamente, achei isso positivo. De uma forma ou de outra, entre desacordos e sintonias, entre discussões tórridas e conversas banais jogadas ao vento, eu me senti em paz só por estar onde eu estava, por estar com você. 

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

alaranjado.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017 0
Quando todos os gatos são pardos, a gente consegue identificar qual é a nossa cor verdadeira. Eu sempre fui alaranjado: às vezes mais escuro, às vezes mais apagado, mas sempre fui da cor da abóbora e do por do sol. Talvez tenha demorado alguns anos para perceber qual era a tonalidade da minha essência, mas desde o momento em que percebi que minha áurea era laranja, assumi minha verdadeira coloração de peito aberto e sem medo de ser quem era. Laranja fluorescente, laranja que cega. Laranja lima, laranja pêra. Laranja que vai além do que foi designado para ser. Além de cor, além de objeto, além de mim. Laranja que surge no céu quando o sol se nasce e se põe; laranja que reflete nas lentes dos meus olhos e da minha câmera. Foi à noite que eu pude perceber que o laranja brilhava em mim enquanto tudo parecia se dissipar. Foi no escuro que eu pude ver que o cinza tímido que eu imaginava ser não era nada mais que um disfarce para o alaranjado que iria surgir. E foi na solidão que eu vi que a gente se torna a cor que a gente quer ser.
 
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